A partir do documentário O Começo da Vida, que ilumina o período da primeira infância, reforçamos a importância de estender este olhar de cuidado também ao período antes do nascimento.
Qual é o impacto dos primeiros anos de vida na existência de um ser humano? E na sociedade? A partir dessas perguntas, o documentário brasileiro O Começo da Vida coloca luz sobre esta fase do desenvolvimento (dos zero aos seis anos), formando um mosaico de perspectivas de pesquisadores, especialistas e famílias de diferentes contextos em torno do tema da infância. O intuito, como declarou em entrevista a diretora Estela Renner (que dirigiu também Muito Além do Peso e Criança: a Alma do Negócio), é dar novo significado a este período da vida, “definidor de toda a existência”.
Se em momentos não muito distantes da história a criança já foi tratada como um pequeno adulto ou um “vir a ser”, hoje fica cada vez mais evidente o seu potencial para a conquista de transformações sociais realmente importantes. E não apenas no futuro, mas no presente, a partir de seus olhares, linguagens e participação ativa tão peculiares. Basta ter atenção. Alinhado com estes novos tempos, o documentário faz um movimento de restituir a elas um lugar central na sociedade, observando todos os fatores que podem influenciar o seu desenvolvimento. Assista abaixo, o trailer oficial.
“Os primeiros anos são como construir a estrutura de uma casa. Você constrói a estrutura sobre a qual todo o resto se desenvolverá”, afirmou em depoimento ao filme o pediatra Charles A. Nelson III, da Escola de Medicina da Harvard e do Boston Children’s Hospital. A visão é complementar ao dado neurocientífico de que é nos primeiros mil dias de vida que o cérebro encontra sua maior capacidade de desenvolvimento: “Desde o nascimento, todas as suas interações com o ambiente influenciam no desenvolvimento cerebral e vão determinar como a criança vai crescer a partir dos estímulos que recebeu”, completa o obstetra e acupunturista francês Jean Marc.
Inspiradas pela proposta deste documentário em relação à primeira infância, consideramos importante dar um passo atrás e reforçar a importância de vertermos o mesmo olhar atento e cuidadoso ao período antes do nascimento, afinal, segundo a ciência moderna, experiência e aprendizado se iniciam muito antes de respirarmos pela primeira vez. Para facilitar a reflexão, dividimos em tópicos aspectos interiores e ambientais que podem ser determinantes neste período.
Emoções e sentimentos – “A partir do momento de sua concepção, o bebê ainda por nascer vivencia os pensamentos e ações de sua mãe. Isso acontece porque mente e corpo são inseparavelmente unos. Aonde quer que vá o pensamento, segue uma molécula. Os impulsos de nossas mentes são instantaneamente traduzidos numa paleta de substâncias químicas neurotransmissoras. (…) Portanto, os pensamentos, emoções e sentimentos da mãe se traduzem em moléculas que entram no corpo de seu feto.” A explicação, do médico indiano Deepak Chopra, mostra que o que a mãe vivencia emocionalmente é transmitido ao feto por uma relação bioquímica, fazendo com que o bebê experiencie uma sensação. Por exemplo, se ela vive uma situação de grande estresse, produz catecolamina, substância que causa um efeito estimulante ou excitatório. Se, por outro lado, tem uma vida emocional tranquila, seu organismo produz serotonina, que pode transmitir uma sensação de bem-estar.
Espiritualidade – “Os africanos costumam dizer que não é do dia em que saem do ventre materno que as pessoas nascem, mas sim do lugar e do instante em que elas são concebidas”, escreveu o francês Le Clézio, em seu romance autobiográfico O africano. Sabemos que é tabu o assunto da compreensão do homem enquanto ser espiritual, mas é sempre importante perceber o que a sua intuição diz sobre isso e considerar que existe uma rica diversidade de olhares sobre o tema, principalmente entre culturas ocidentais e orientais. Na tradição oriental, por exemplo, o bebê já começa a explorar sua natureza de pessoa muito antes de fazer a travessia pelo canal do útero rumo ao mundo. Ao respirar, ele dá continuidade a essa jornada de autodescoberta.
Ambiente e sociedade – Assim como existem diferentes visões sobre a espiritualidade e o início da vida, existem também diferentes compreensões sobre o papel da sociedade no significado da parentalidade. Uma mãe em um país nórdico, por exemplo, tem todo o suporte do governo para que seu papel seja exercido plenamente, assim como o apoio de uma comunidade de pessoas para criar seus filhos. No post “Os filhos dos outros, espelho de nós mesmos”, falamos sobre como o senso de maternidade cooperativa – ou seja, aquele que compreende a vida de toda criança como uma responsabilidade comum e não apenas do seu círculo familiar pequeno – pode transformar uma sociedade. Sem contar também com o papel das políticas públicas para que o acesso aos direitos seja garantido neste período. Fazendo um paralelo com O Começo da Vida, sua diretora afirma: “quando o filme diz que é preciso uma vila para cuidar de uma criança, precisamos de uma vila também para cuidar do adulto que vai cuidar daquela criança”.
Saúde física e mental – Se os afetos ao redor do bebê exercem seus efeitos, os hábitos de alimentação e condição física da mãe também são determinantes na saúde da criança. O crescimento do bebê, por exemplo, está diretamente ligado ao fornecimento de nutrientes, transmitidos pela placenta. Cuidar e observar este aspecto no decorrer da gestação (e da amamentação), aliado a um estilo de vida materno saudável, pode ajudar a prevenir doenças por toda a vida. Segundo a medicina aiurvédica, um sistema de medicina natural, originário da Índia há 5 mil anos, ao fazer escolhas favoráveis de alimentação e de sustento emocional é possível garantir que o bebê receba os elementos básicos para criar corpo, mente e espírito saudáveis. Leia mais no post A saúde que vem do ventre, que fala também da importância de um pré-natal de qualidade.
Vale ressaltar que esses fatores não têm pesos maiores ou menores nem são estanques, mas fazem parte de uma integralidade. Todos eles, funcionando em harmonia, é que favorecem uma gestação de qualidade. O fortalecimento das famílias para cuidar de si e de seus bebês, uma vida saudável em termos de alimentação e condição física, um ambiente de afeto e amor em vez de um ambiente de violência e sofrimento, a noção de que o cuidado que se dá ao filho é uma extensão do cuidado que damos a nós mesmos – todos são recursos para uma vida. É saber que, como escreve o médico indiano Deepak Chopra no livro “Origens mágicas, vidas encantadas”, os seres humanos adquirem informações a respeito da vida e do mundo quando ainda no ventre da mãe e que, portanto suas escolhas são fundamentais para proporcionar melhor começo.